Quem brincou comigo de boneca, agora tem nas mãos bonecas que movem os pés quando querem ao mesmo tempo em que jogam os bracinhos no ar.
Mas eu…
Eu que não cresci, fiquei de lado na brincadeira. Mudei de lado na terça-feira e, sei lá, deixei ir por outro trilho, outra margem na folha. Fui ver o mar até conseguir tocar o invisível…
Nas minhas mãos ficaram as bonecas de pano, com cabelos coloridos em fios de lã e olhos bordados em linha. Eu que não cresci brinco na terra, bolinho de barro.
Brinco que voo e depois nado nas nuvens que não alcançam o asfalto. Eu que não cresci vi o tigre rondar o centro da cidade deixando a pegada na caixa d’água. E vi a imensidão do branco da coruja que pousou por um segundo na janela…
Quem brincou de boneca no mesmo quarto onde eu brinquei agora espera e ajeita o berço, passa por água cada pedaço de roupa, imagina pés pequeninos que caibam em sapatinhos feitos em mãos de avós…
Quem brincou comigo de boneca perde a noite de sono reparando que logo as noites serão talvez mais clara e chorosas… Eu também perco noites de sono esperando por sonhos outros, de outros lugares, em outras mãos, em outras linhas de contos mágicos. Eu fico as noites ouvindo aviões que não passam por aqui e sentindo o pulsar correndo. Eu fico as noites alinhavando retalhos de histórias que serão colhidas na manhã seguinte… Talvez.
No quarto de bonecas as meninas brincam o futuro. Mas algumas delas, de repente, ficam do lado de fora e descobrem que no ar tem casa uma outra música com melodia e voz desafinada. Uma menina ficou dançando no invisível e escapou carregada pelo vento.
Das histórias de bonecas, não há melhores ou piores finais… São histórias que escrevem na própria vontade de ser.
E eu que brinquei de boneca não cresci. Perdi a hora e fiquei para envelhecer como criança que sonha longe, longe… Longe demais para perceber o tempo.
Eu que não cresci, ao invés da boneca com olhos que abrem e fecham quando querem, fiquei para plantar estrelas e voar nas asas do pássaro que me observa deixando pão na janela. Me atrasei na conversa com o cão que ainda não dorme…
Eu me demoro nas páginas por onde me debruço, como criança que ainda não tem medo das dores, que não tem medo que o tempo passe… Que passe rápido demais… Que não chega, nem basta.
Eu que não cresci deixei a brincadeira de boneca e a dança da cadeira. Distraí as histórias que quis ouvir com a idade de uma criança que cresceu e não cresceu. Distrai-me com as mãos de um bebê que sorri quando encontra a borboleta…
“O tempo está passando”, é o que ouço por aí, quando a metade do ano chega sem nem avisar. As horas em que eu vou me aproximando um pouco mais de um número crescente… Eu chego perto, encosto, fico velha mas não aprendo. Eu não prestei atenção quando alertaram que cairia na prova sobre isso de crescer, de agarrar uma vida adulta, uma vida de verdade. Eu fiquei brincando…
E eu que não cresci, vi tudo mudar cedo demais. Numa idade em que dizem que nada pode dar errado, tudo pode dar. De repente, você acorda e o mundo está devastado, arrancado pela raiz…
E agora a vida toda é tentar levantar as ruas, as árvores, as cores e as palavras… Porque o mundo mesmo quando ficou triste continuou bonito, como uma brincadeira que não deixa de sorrir.
E eu que não cresci, cresci rápido demais… Tive que só observar o cenário mudar sem poder dar um passo e parar as cortinas e as cores de trás… O mundo ficou sem idade. Eu andei, e ando, pra frente e pra trás.
Às vezes ainda brinco de boneca, faço montes de folhas secas e pedaços de pau, ando de motoca e invento uma garagem para os carrinhos. À vezes invento que o dinossauro verde comeu muita alface e o marrom muito feijão… Espero uma borboleta para me dizer o acaso mágico que me levará no foguete lançado a outros céus, outras noites… Para outras ondas do mar.
Mas como eu não cresci e nem fiquei séria, quando o fim de tarde chegou eu deixei que meus olhos ficassem no sol que foi se derramando em piscadas, ali, logo depois onde os silos armazenam a safra. O rastro do avião foi se transformando em nuvem, as nuvens em asas de pássaro. E no fundo do céu onde o sol escorou seu calor, o mar acarinhou-se em pequenas ondas brancas como as penas da coruja que não voltou…
Não chuto mais as pedras, aprendi a respeitá-las. Invento histórias, futuros e acasos. Ainda pulo na poça de água. E espero para ver a chuva cair. Eu que não cresci, durmo no chão, gosto de camisetas velhas e leio poemas. Invento mais histórias e às vezes quase escrevo.
Não crescendo parei no acaso – outra vez – para contemplar as meninas que brincando de boneca transformam o tempo.
Porque eu que não cresci fiquei a ver estrelas…