Bilhete…

Há dias, semanas, penso ter sonhos... Não reviro pensamentos, guardo os olhos na superfície das raízes. Não encontro, nem aceso nem dormente, sonho nenhum. Na falta não concluo nem retenho, não chego nem alcanço. Sento-me…

E na linha entre um corpo sentado, o sonho e o que vem perco o que não sei. Sou a criança que não pisa - na linha. Caminham os olhos no chão, tem ouvidos as folhas falantes sem memória e sem demora. Não sabe, a criança, onde estão recortando pedaços nem colando o plural da mão contrária...

É quando assisto, são pilhas empilhadas e elétricas de precipícios colecionados. No ínfimo fio não pisado, no logo e quase a criança coleciona as dobraduras dos nãos, fios deixados em feixes de por um, quase(s), por pouco, poucos, tantos poucos. É na trave, bate a cabeça, desmorona e desmorono. Fica e fico leite de figo, um significado inexplicado, a trave… A criança recolhendo chãos…

...Se tivesse chegado antes, um minuto mais tarde. Se existisse o corpo ajeitado, a desenvoltura das paredes e dos holofotes. Se tivesse nascido outra…
Se tivesse talvez perdido definitivamente a imprecisão do escapado, a coisa engaiolada para fora, o vento ventre preso no ar, suspenso nos fios de uma antena solta no invisível... 
Se fosse um verbo, uma clareira, um sucesso, se fosse o que queriam que fosse. Se não fosse a estranha que sou que é criança…
Se não fosse o eu…
Se não fosse o eu que escapa.
Se fosse só uma criança.

O acaso de talvez é, também talvez, um acaso inverso, de lado avesso. E na pergunta o silêncio e a pergunta é silêncio e a resposta é o silêncio que veio primeiro. E silêncio é tudo que tem e tenho, a amplidão de tudo que não é função falar. Aqui agora é lá e não é lugar, é mundo…

Porque me encasulo agarrada no que um dia… E não. Ânsia por um único dia que foi de querer abandonado e abandonei. A coisa que revejo revista, hoje… quando vasculho ares por planos ficados no papel, onde só poderiam ser. O peso de uma lágrima incha no canto do olho… A lágrima é memória de quando cai, a estiagem é tocável.

Minha memória tem cheiro, cor e pulso. E as ruas tem o que alegam, a tempestade do dia anterior, um feito de noite que chega mais cedo…

É quando rasgo papéis de mundo, chuto baldes que depois choro desculpas, cada pedido pesa um pouco mais a culpa que recolho acumulando, acumulando, acumulando a desordem do meu sono, do depois, do antes, do desavisado agora, do sem hora, de qualquer coisa que agora tento determinar e me termino, pó… Pó nas beiras de um arquipélago recortado em marcações de lugares que só existem marcados nos mapas de uma criança. O pólen escapou por entre os dedos, era flor de vento, mas não sei. Era do vento, não tinha nome, tinha jeito e foi no vento, foi depois. E eu rasgo-me, me afundo… Nada dura mais que um passo, são quilômetros. Não sou feita para durar, eu caio e me rasuro. Debruço-me no des-vazio… Nos bolsos levo os vazios que estão ali para pesar o silêncio, para pesar os passos, para andar às margens do rio, o mundo do mar, as pedras fundas do princípio, a imagem que não consegue acabar. 

Eu cansei. Estou fundamente cansada para entender o que tudo - isto - não quer dizer. O que 365 dias viram, silenciaram, empurraram vizinhanças que nem bateram e se afastaram. Enganada enganei-me em tanto tempo que enganei a mim sobre mim. 

Eu sinto. São dores de cansaço que estão no meu corpo, mas eu não tenho um corpo. A dor deste corpo é a única coisa que quero sentir. Esta dor não é coisa é vida.

Eu desisti. É definitivo…

Eu não respirei. Parei como um fragmento e o respiro cansado de si em si parou. E parado parando me parou. É o mapear da dor ligando pontos. Até mesmo a sutil indiferença escapa por dedos que não foram vistos.

Eu e os cães somos talvez os únicos desprezados da pressa desta rua, desta específica rua riscada repetidamente. Não importam as teias penduradas na dimensão da janela do café, não importa o que não sou, o que deixei de ser, o que sou e sempre escapa. Não importa se sou só o que escapa. Estou escapando, fugindo, é um sempre que tenta parar e fazer casa… E desiste. E escapa...

Eu enganei. Enganei rezando que era o lugar. Enganei cada convencimento que ergui com barro e sem tempo de sol. Enganei, porque não tenho lugar nem pertences. Tenho enganos que se desenganam e me sacodem. Eu tenho esse eu que sou precipício do terremoto, as asas quebradas do corvo no cume centro cruzado, marco zero de ruas que se cruzam em todas as direções. Eu sou esse corvo que não voa. O corvo que não voa sou eu.

Sinais verdes, pedais acelerados. Vou desembarcar sem vizinhanças, sem vizinhos e soprando na borracha as migalhas das promessas que não tiveram tempo nem caminho. Não tive braços. Vou embora e me desfaço feita outra vez.

Num sábado de sol, no livro assinei o atestado do que fora promessa vencida. Nada além de promessa, o alto mar e o gole insaciável de onda de sal. Mar. O marco para antes e depois e lados.

Depois ou antes acabei por engolir as refeições para marcar o tempo, para iludir a intenção do que vai avante, que passa e anda como para pontuar o tempo, inventar uma existência que não me cabe dizer o que é. Gosto nenhum a sentir… Eu engulo as marcações do tempo, a fantasia de criar a forma e fazer andar. No domingo vomito tudo, tudo para fora, outra vez perdido controle, acesso, ar.


No meio tempo entre o apagar de luz e o parar os olhos, brilham estrelas e lua vermelha. É a ponta do que me embala. Não quero escrever agora, quero continuar lá fora. Escrevo… Uma intenção de orvalho me desaguou por horas. O peso da lágrima quente. As 4:20 escuto pássaros…

Um bilhete na margem da cama ou do sono dizia “we are so sad…”


26.05.2020
03.06.2020
05.06.2020
06.06.2020
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12.07.2020