Onda…

Os cadeados estão sobre a mesa, eu não sei o que significa a manhã. Não me desfiz nem mesmo do lixo. Recolhi as migalhas rasteladas num morro. Na colher do café misturei angústia como canção, fugi de casa para suportar… as asas e as hélices, o som da letra muda, o peito inquieto quieto na chuva que se deixou à calçada, a rua adormece enquanto o sono é um solitário passeio de barco ou a resposta para o que é de uma criança… Engoli baforadas de peito disforme, palpitante, oco e cheio, transbordante. Pendurei canções para secar e esquecer. Fui encontrada por formigas, perdi o tamanho do mundo. Me recordei. E me recortei, me remendei, colei… me recordei. Esqueci a água, lembrei da sede. Existe neblina da noite ontem. Há indício de lua - talvez início, talvez fim. Existe um pneu na sacada. Vive um pneu na sacada e o perfume borrifado e o cheiro do mato, o enxame do corpo e o fim do corpo no corpo, é a rua. Existe, é a cápsula do estômago e o aro de aço pendurado no doce das nuvens. E a rejeição da orelha e o desenho ajeitado das pedras. Não existo, fim… desencontrei a paciência, me afoguei. Estranhei-me tanta palavra, doem-me os dentes. Eco de silêncio. Ecoo a rebeldia de pôr o dedo na boca. Solto-me, é vento… Doentio, é a única salvação. E o único sentido - ou quase - é o caderno agarrado nos dedos. Mas pode ser que as remadas do ritmo por onde a onda se ergue e escapa também façam algum sentido. Sobrevivi no ímpeto.
Conspira-me: Rio ou mar?
No ímpeto.
Sobrevivi…
Conspira-me.

Quando se perdem nortes e passeios escrevo. Deitada no mar sem fundo, nua, completamente nua, pois são irrecuperáveis as vestes. Quando todos os nortes e todas as direções a sul se perdem em pistas e tudo se desmancha da palavra... Contra apitos e fumaça, desnudar-me de rumo. Eu nado nua, eu nada nua. Mar aberto, engolir-me beijada em ondas, desagarrar-me solta. No mar aberto, sem fundo, estar ou ser. Escrever o nado, nadar as ondas e nada além das ondas. Não há razão ou milhas para agarrar o horizonte. São ondas, estar pelas ondas, mais nada. Estar nas ondas. Levada e trazida, carregada a escrever a onda. É molhada, macia e intocada.

 
27.08.20