Clarice, te escrevo Marisa

Chico voltou a dormir nos meus pés, ainda está um início de dia nublado lá fora e eu perdi, na minha cabeça, o esboço do que comecei a escrever sem escrever ontem, enquanto a paisagem mudava, enquanto o desenho que se formava era uma pintura estendida de cores em abstrato.
Escrevo sobre Marisa, um instante em que o mundo girou entre as palavras em nós trocadas. Escrevo sobre Marisa e o meu pranto de emoção e respiro e o respiro que voltou em mim ao me perguntar… Tu conosci Clarice Lispector? Parece pouco, uma conversa banal, corriqueira, para quem olha apenas para a pergunta. Entretanto, o que houve ali, genuinamente, não foi pergunta nem resposta, foi entregar-se a um outro disponível a existência. A conversa continuava e eu (a)notando, através de Marisa, um tu e um eu existente (e resistente), sendo não por funcionalidades práticas, mas por ser… Na abstração e esfumatura, nas curvas e tonalidades. Pois a própria pergunta não vinha por acaso… Ti ho chiesto perché mentre tu parlavi ho capito qualche somiglianza con quello che conosco nella scrittura di Clarice… E esse foi o começo de um diálogo genuíno e disponível que seguia em língua italiana até o Brasil, o Rio e Clarice, até Portugal de Tabucchi e Pessoa, seguimos e atravessamos a fronteira e nos deixamos levar em espanhol às ruas, ruelas e arquiteturas de povos e lutas. Ali, sentadas, espalhadas por um jardim de sol amarelo, vagamos pela saudade, uma palavra usando outras palavras nas nossas bocas de outras línguas, palavras sem declaração a um tempo amarrado de passado ou de futuro. Marisa, sem saber, viu-me, talvez como o animal de Derrida, nu, puro, entregue a ser. O animal que ao de lá de ser visto é também capaz de ver e não pronunciar. Marisa me viu, não no meu ir e vir, carregando ou sorrindo. Marisa viu-me, na minha transparência, num atimo do tempo em que eu não... Ali, entregue ao meu mundo tanto quanto eu estava entregue ao seu - nosso reflexo impensado na verdadeira alteridade de Levinas ou no nosso, EuTuNós de Buber - Marisa me levou para andar pelas ruas de Rio de Janeiro, às janelas onde vejo Clarice olhando as luzes do amanhecer, o meu Rio de Edith Piaf, as nossas histórias trocadas, a nostalgia de um encontro em ruas brancas de Lisboa. Marisa, na nossa troca disponível deu-me palavras, essa que agora esparramo aqui, enquanto Chico se esparrama aos meus pés. ‘Um sopro de vida’, foi Marisa quem me deu num instante de distração, no único dia em que estivemos juntas, num lugar sem nome, não disponível a um roteiro geográfico, a um chegar determinado. Nós fomos até o outro e lá e então pudemos ser…
Deste reflexo da onde parto, continuo, continuo, continuo, continuo… Transparente. Vivendo. Sendo. 

Dentro di me, ti porto con una domanda e un mondo che ritorna nella disponibilità d'essere con un altro, lasciato all'altro. Ti porto e ritorno al di là del panorama che scorre e in silenzio pronuncio, Grazie.  

16.07.24