Mangiare. Andare. Seguire.

É domingo à noite, escrevo num presente passado, na tela o filme visto, revisto, prestes a ser visto outra vez. Neste filme, Tempero da vida (2005), pensava ao escrever o que ainda não fora escrito.
Andando na manhã de domingo pela cidade da passagem retorno voltando ao lugar recém deixado, seguindo. Caminhando pela cidade, pelas mesmas supostas ruas que caminhava, revendo os supostos lugares de sempre, dessa vez não houve pressa, eu afrouxo os ponteiros, os relógios. Supostamente são os mesmos caminhos e direções, os mesmos enredos, mas eu vou devagar, não tenho pressa. Estou indo ao supermercado, corto as mesmas ruas do bairro, passo pelas flores que continuaram colorindo um trecho da praça, olho os jardins, alguns estão mais verdes e perfumados. Neste meu andar acompanham gentes, mesas, pedaços embrulhados em guardanapos. 
Eu abro o caderno nas beiras da calçada e do asfalto que só percebo no fim da linha, escrevo:
Passar por Portugal é ainda me perder pela cidade nas manhãs de domingo, por um suposto por onde sempre andei… 
Daqui, ouço risos com a taça de espumante entre caixas e mercadorias no fim do expediente. Vivi a vigília de Natal com um lastro que se pronunciava, sem usar palavra, família. A mesa branca, os detalhes de gestos que não precisam dizer amor e que estão lá. A comida, de mãos em mãos, oferecida e partilhada, a Cate sorrindo, a Vivi contando, o Carlo ouvindo, eu coccolando a Polpetta… Preparei o cuscuz e levei à Vivi que o almoçou sentada num banquinho sobre a muralha, olhando o horizonte. Aqui andando lembro da hospedaria transformada em casa, de Mônica chegando e nós dobrando juntas os lençóis, nossos pranzi com o meu tofu e húmus e a ricotta e o kefir dela. Com o pote de salada já na mesa dividimos o resto do Champagne deixado pelos hóspedes, é pausa pranzo e há sempre algo a celebrar e celebrar então somos nós bebendo champagne e comendo húmus do supermercado, é a conversa, Mônica me levando pra casa, oferecendo ameixas do pomar, eu comprando água para ela.
Foi simples preparar algo para a Rebecca, bastava um pouco de disponibilidade. Era bonito enviar uma mensagem pedindo limões e vê-la chegar esbaforida depois da subida. Era fácil lembrar de comprar shoyo sem glúten, preparar uma salada, fatiar uma cebola, fazer isso era vê-la ficar. 
Enquanto subo ou desço os degraus ouço a Cris, cosa se mangia? Sorrindo sinto prazer no prazer que era estar de frente, observando-a comer um prato cheio de emoção, com cebola, alho e óleo - que eu passo. Só agora percebo que estivemos lado a lado na cozinha, eu preparando pastinhas e húmus, ela esmiuçando na ponta dos dedos detalhes de arte na apresentação. Com a Cris, entro na cozinha de amigos que cozinham juntos, provo a bruschetta que ela preparou e a guacamole com referências da viagem à América Latina, foi a melhor que já comi, e foi ali, em pé, naquele cantinho de cozinha improvisada por amigos viajando, se encontrando. Em todas as poucas vezes que fiz guacamole depois disso lembro-me sempre da amiga da Cris que a preparou naquela noite, eu não lembro seu nome, mas lembro o sabor da sua comida e lembro da doçura do sorriso e das histórias que viveu e me contou. Logo ali, no dia seguinte, Giovanni preparava pasta con fiori di zucca e zucchini. Cris e seus amigos num trecho de final de semana me deixaram um tanto de afeto, alento, gosto e partilha. Ciao belle persone…
Nestes dias, conto ao Xinrui sobre quando Peilin me fez chorar comendo macarrão de arroz com pimenta, ou melhor, pimenta com macarrão. Lembro de nós três mangiando una bella pasta nas beiras de um verão italiano, penso em Peilin e imagino-a prestes a estar na China, comendo tofu. Desenho-a na destreza da sabedoria dos palitos talheres em seus dedos finos. Sorrio outra vez com Xinrui escolhendo pizza vegana.
Chego fazendo surpresa e volto pra casa com a Sandra metendo maçãs e pêras na minha bolsa, oferecendo-me um copo d’água neste calor. Chego cá e nos aventuramos numa cidade bagunçada, de ruas trancadas, mas no fim acabamos por encontrar o supermercado. Trocamos receitas e sugestões, dessa vez ela não ataca o saco de pão antes de chegar a casa.
Eu às vezes me lembro de alguém que não conheço pessoalmente, que criou um restaurante em sua casa no Rio de Janeiro para receber pessoas com receitas que vem de histórias de família, alguém que gira lugares propondo-se e guiando-se por sonhos. Eu chorei de emoção ao ler a plaquinha pendurada em sua cozinha “tudo aqui já foi um sonho”. 
Eu penso no M., naqueles dias ainda de inverno, quando o via passar e entrar na loja trazendo merenda para todas, ou quando chegava na cozinha e o fermento continuar lá, sendo gestado. Depois de dias o cheiro da focaccia pronta, cortada aos pedaços, compartilhada com quem leva para casa e come no jantar. Penso no M., o prato quente ao chegar em casa, uma fruta, um doce, o risoto de abóbora, o croissant que ele ainda não fez, o nosso andar pelo mundo descobrindo outros gostos, outros sabores. Eu lembro sempre quando, no primeiro encontro, levou-me uma maçã que acabou dando a uma pessoa na rua. M. me faz perceber a comida como gente gesto de amor, como um ato de doação, de tempo e de quem somos.  M. me mostra sobre a intimidade e a vontade de estar na vida, de viver intensamente…
Por isso talvez, estar cá é caminhar para reconhecer pedaços de casa e então esperar na cozinha até que a Iasmin volte trazendo as longas conversas. Aqui, fogão, pia e mesa entre goles de café, bananas que terminam e são roubadas com avisos e mensagens, gramas de aveia, eu e a Lu na sintonia de um é muito doce e descer cascatas cheias de fome e dividir um pedaço de pão ou de maçã com a Frida. Ter como o primeiro ato do dia encher os pratos do Chico e da Ruska. Estar aqui e ter um tacho por lavar e o aroma de tofu no shoyo, potes de manteiga de amendoim, resistências, insistências, o tempo nos contando sobre quem somos.   
Estar cá é encontrar o Thales no mesmo lugar de sempre e ter amoras da D. Guida para dividir com ele, passar o dia juntos, almoçar e descobrir entre barulhos de pratos que ele gosta tanto de vinagre quanto eu. Sentindo o gosto da sua risada e o movimento das suas mãos em gestos, dividir a quiche, o chocolate que ele lê mil vezes a composição, o café e a bala de gengibre. É eu pedir para que ele faça bolo de chocolate - desculpa M., mas o do Thales é o melhor do mundo. É dividir as histórias, as ansiedades, os sonhos e a alma de arte.
Outro dia eu falava para o M. como tinha vontade de voltar para o Girasole e recordar, sentindo com as palavras, comida e ler histórias nas garrafas, garfadas e pedaços divididos. Estou lendo e degustando, sentindo o gosto enquanto caminho essa cidade num domingo de manhã como, supostamente, sempre fora. E o que foi vontade começa a saltar em letras, nas frases, sem se impor, enquanto caminho por ruas sem lugares.
Caminho por esta manhã de domingo ou pelas palavras da terça-feira e lembro de uma conversa com o professor Lúcio há muitos anos atrás, quando morei na Itália pela primeira vez. Ele dava-me Walt Whitman, dizendo-me alguma coisa sobre… não há um lugar para quem escreve - ou para quem tem a alma de escrever, escrever é o lugar. Num dia seguinte ao pensar sobre essa manhã de domingo eu volto aquele bar onde, sentada, eu olhava para rua enquanto o professor Lúcio dizia… 
Existe um encontro não evidente entre o lugar-não-lugar e esse sabor de vida temperado por existências que se misturam e que são levadas a fogo lento, aquecem ou se resfriam. Num canto da mesa, ouço o rumor dos goles, vozes rindo, vidas que se contam. Hospitalidade, sinal da alteridade que a singeleza da vida me ensina, para além da referência teórica que o M. esqueceu o nome. 
Eu continuo caminhando, sentido aromas, encontrando casa e gente de lugares sem lugar, de Whitman e tempero de vida, que entre aromas e um prato a mais na mesa, sublinham lugares, mudanças e um estar de ser para além das geografias. Escrevo sobre comer ou sobre afetos, histórias que me fazem caminhar neste domingo sentindo gosto de gente. Um girassol girando-se, buscando luz para a sua cor, dando gosto às suas sementes…

23.07.24



fotografia capa, domingo de manhã